quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que há em querer-te

O que há em querer-te,
Minuciosamente querer-te, se neste
Desejar-te profundo há magnitude,
Se nessa beleza inexcedível há
Qualquer coisa de extraordinária?
O que há em querer-te,
Se me queres, árdego, em teus pelos?

O que há em querer-te,
Querendo-te ardentemente, supondo
Em cada pôr-do-sol tua fisionomia,
E em cada crepúsculo, teu umbigo?

O que há em querer-te apenas,
Ou ainda amar-te vorazmente os seios,
Como prova inconteste do meu amor leviano?
O que há em querer-te levianamente para todo o sempre,
Sendo o Sempre a parte impalpável do amor,
Tornando-me, assim, heróico e intimorato?

O que há em querer-te,
Se te quero não por mim,
Se por ti, não por ninguém,
E a ninguém quero tanto quanto a ti?

domingo, 21 de novembro de 2010

Axé, Omolara, Iorubá

Ó Omolara, representante
Fidedigna do povo de todos os santos,
Levanta-te com teus povos!
A redenção tua não será edificada
Sem eles.

Ó Omolara, da tez negra
E olhar diáfano, do coração reluzente,
Da vida em todos os orifícios,
Beleza que tortura, que prende,
Que encanta, constrói:
Beleza estupenda da história
Do sangue que te corre nas veias;
Do sangue derramado dos nossos antepassados,
Omolara, pelos algozes de ora e outrora.

Ó Omolara, filha da África...
Tua mãe, nossa mãe, proporciona-nos tanto prazer
Ao lembrarmo-nos dela com saudosismo, das
Lutas empreendidas por nossos irmãos
Para benefício nosso – benefício
Do qual até hoje, ai de nós, Omolara!, não desfrutamos.

Contudo os objetivos mantêm-se
Fortalecidos dentro de nós,
Em companhia do amor o qual te devoto,
O amor que me prende eternamente
À pele negra do teu corpo desnudo,
O idílio de cada luar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Itinerário

Quisera sentir o peso do teu ventre
Nos meus lábios sitibundos,
A epiderme do teu amor florescendo
Em minhas vísceras,
Despejando em ruidosas alegrias
Gotas acres de melancolia,
E obtive nisto êxito quase integral.

Serias afinal uma estrela,
Ou serias ainda o próprio vento,
Quando não, uma musa de pátrias longínquas
A desbravar mares sobranceiros.

Ao infinito! Eis o que disseste,
Na verdade quando nasceste,
Bem como segurando em tuas pequeninas
Mãos cosmopolitas uma dose desmesurada de saudade.

Ao infinito! Levei ao pé da letra,
E meu futuro é amar-te sempre mais,
Como se fosse ainda o início de tudo,
A crisálida provisória do mundo...

Era o labor contido de tua paixão
Já deflorando meus neurônios,
Que apenas em ti vislumbravam
A parte que até então me faltara,
A Lua que não conhecera a Terra.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Morro-me e ressuscitas-me

Grande contentamento sinto
Ao ver-te, amada minha,
E, mais do que isso, escrever-te,
E, ainda mais, descrever-te,
Estátua de cútis e ossos e sangue,
Sub-produto das centelhas febris
Que me perturbam à noite,
Combinação perfeita da genealogia.

Unicamente bela, plenamente sublime,
Corolário magnífico da prole humana,
Dos anseios divinos e dos meus,
Teus seios são dois lírios orvalhados
Pela tempestade de prazer a qual me incutes.
E os olhos, quando abertos, são mares cristalinos,
Onde pousam os raios de sol do meu olhar
Refletidos pelo teu adamantino e iridescente;
Quando fechados, são dois astros,
E neles se refletem a opacidade do infinito,
O horizonte hermético do futuro,
E o plenilúnio renova-se nos teus beijos.

Morro-me para renascer, ainda uma vez,
Nos teus beijos de luar, e cada segundo
Torna-se eterno, e cada partir torna-se
Uma morte.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Abismo

O garoto estava à espreita; observava a presa a fim de dar o golpe e fugir sem ser visto. Era preciso um trabalho meticuloso de reconhecimento da área, dos transeuntes, dos possíveis pontos de fuga. Todo o plano materializado na mente, tinha experiência em pequenos furtos.
Etnia: negro; estereotipado: marginal. Quando nascera, grafaram-lhe na consciência: “Flagelado social”. Tivera família, mas era como se não tivesse. O pai morrera vítima de um acerto de contas entre os traficantes dissidentes do local onde habitavam. Rodrigo, a mãe e os três irmãos tiveram sorte e conseguiram escapar, o mais novo com um ferimento na perna.
Rodrigo ia à casa, em média, duas vezes por semana, com uma pequena quantia de dinheiro roubada dos pedestres da Central do Brasil. Era preciso dividir o dinheiro: o crack, vício que adquirira para ser destemido; o chefe da guarda policial responsável pela área e as despesas da casa. Aprendera a resignar-se, e até considerava-se feliz.
Fabricara uma arma, composta por metais e madeira, com um pedaço de arame para prender a extremidade pontiaguda que ele utilizava para amedrontar suas vítimas e, se preciso, feri-las. Não pensava duas vezes: “Quando me pegarem, não terão piedade de mim.” , dizia consigo. Entretanto, nunca havia matado ninguém.
Agora, ali, defronte ao escolhido, na iminência de atacá-lo, pensava nas possibilidades; evitava encará-lo diretamente; não queria chamar atenção. Branco, esguio. Não tinha tempo para analisar-lhe o olhar. “É agora”, pensou. Enfiou a mão no bolso, pegou o vidro que continha a cola e cheirou. Sentiu-se forte, despiu-se de temores. Como se o destino o ajudasse, a presa deixou cair no chão seu maço de cigarros. Quando se abaixou para pegá-lo, Rodrigo, ágil, hábil, enfiou a mão no bolso do homem, empurrou-o para ter tempo de fugir e correu. O rapaz caiu, atordoado e, quando procurou, viu apenas algumas pessoas que o cercavam, assustadas e preocupadas se o rapaz havia se ferido.
Ninguém vira. Rodrigo, a salvo, disse consigo: “Não foi preciso usar a arma. Mais fácil do que tirar doce de criança é tirar carteira de otário.” Abriu a carteira: duzentos e cinquenta reais, alguns cartões de créditos, um papel que continha telefones importantes e uma foto. “Deve ser a namorada.”
Domingos, policial, viu o menor. Aproximou-se: “Cerol, o que tem aí?” Cerol era como Rodrigo era conhecido na rua. “Cinquenta reais”, respondeu. Havia escondido o resto do dinheiro dentro das calças. Domingos, esperto e calejado, conhecedor dos ardis dos meninos de rua, deu um duro golpe na moral de Rodrigo – e na sua também. Despiu o garoto com um movimento rápido e o dinheiro caiu. Tapa no rosto. “Acha que eu sou esses moleques otários que você rouba na rua? Quer tomar porrada?” Domingos pegou todo o dinheiro, vasculhou a carteira: “Para você se divertir”, e atirou a foto da suposta namorada do rapaz sobre Cerol. Saiu. Cerol, ainda sob o efeito do entorpecente, disse: “Um dia eu vou te matar, filho-da-puta.” Domingos fitou-lhe, indiferente, e disse, com uma calma assustadora: “Se você não morrer antes...”
Doze anos.
Passados alguns dias, Domingos encomendou um serviço a Cerol: matar um policial, companheiro de guarda, que supostamente sonegava a propina que recebia. Costa era seu nome. Arisco, Cerol perguntou: “Por que não faz você mesmo? Eu nunca matei ninguém, não. Não sei como se faz.” “Ora, rapaz. É fácil. Não pode pensar. Quando chegar o momento, você conhecerá a força que tem. É rápido. Além do mais, um dia você vai precisar. É bom que já aprenda.”
Cerol conhecia Costa. Não estava disposto a matá-lo. Mas tinha raiva de Domingos. Matá-lo-ia. Seria a vingança prometida e desdenhada.
No dia combinado, Domingos encontrou Cerol na entrada de uma viela. Entraram num bar. Domingos tirou uma arma da cintura e mostrou-a a Cerol. Não era sua própria arma que ele portava. Era uma arma sem registros, com a numeração raspada, clandestina. Pretendia incriminar Cerol sozinho, para depois matá-lo. Assim, o crime contra o Costa não podia ser com sua arma. Domingos explicou a Cerol como deveria proceder: “Ele está na rua, fazendo patrulha. Vou atraí-lo para o fim da rua Mem de Sá. Você não pode ser visto. Ele estará armado. Não respire. Se ele te vir, será fatal para você. O momento te dirá a hora certa. Atire. Você não pode errar.” Assim, Domingos eliminaria um concorrente e criaria a ocasião para matar Cerol, que era visto como um perigo futuro. Dois problemas resolvidos de uma só vez. Também estaria na cena do crime, porém não falara isso. Logo após Cerol matar Costa, Domingos mataria Cerol. “Me dá sua arma. Quero acabar logo com isso.” “Está no carro. Tome esta.” Cerol era perspicaz, sabia que Domingos não podia deixar o crime impune. Um policial morto, alguém teria que pagar por isso. E Cerol já decidira que a corda não arrebentaria para o lado mais fraco. Pegou a arma. Sentiu-lhe o peso; sentiu o peso de uma responsabilidade que não deveria pesar sobre seus ombros. Olhou nos olhos de Domingos – pela primeira vez fazia isso com uma vítima; Domingos emanava perfídias no olhar; olhos maus, vermelhos de sangue. Cerol apontou-lhe a arma; falou: “Filho-da-puta. Quem vai morrer vai ser você, desgraçado. Isso vai ser por todas as porradas que você me deu.” Domingos demorou para atinar; o pavor deformou-lhe a fronte. Quando ia ponderar, Cerol atirou. Certeiro. No rosto. Cerol deu mais dois tiros; correu. Domingos ainda estrebuchou. Olhos bem abertos, o sangue escorria de sua boca; o pavor estampava-se em sua fronte sem vida.
Cerol sumiu. Nenhum morador tornou a vê-lo. Estava submerso na lama que a sociedade lhe impusera. Talvez voltasse a praticar pequenos delitos; talvez se entregasse de uma vez à categoria superior de criminosos. O certo é que estava eternamente condenado, não pela justiça, mas sim pela injustiça da sociedade hipócrita que subjuga um pequeno ser, impelindo-o ao crime e aproximando-o da morte.

sábado, 6 de novembro de 2010

Inefável

Constas em presença e corpo e espírito,
Sempre indissolúvel, nos meandros escusos
Dos meus olhares difusos,
Sendo sonho, e isso é finito.

Na fronte sublime
Tens reflexos de luminosidade,
E nos olhos exalas saudade,
Então não há nada mais que me anime.

De tua luz te vejo:
Incandescente, vejo-te no futuro,
Não neste nosso obscuro,
Mas no emaranhado de desejo
Chamado libido,
A sucessora do meu olvido
De tempos idos,
Tempos tão tirânicos!

Doravante as maravilhas do mundo
Serão as partes do teu ventre,
De todo o teu corpo, dos teus pés, entre
As curvas, das tuas mãos, dos teus pelos rubicundos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Bifurcação

Concebo a dimensão da importância que tinham
Minha solitária companhia
E as conspirações que em meu peito se perpetuaram
Entre ilusões retrógradas e diversas.

Sem meu corpo transfigurado
Perdi tudo quanto era necessário:
As falas desdenhosas,
A maciez maquinada
Por seres extraviados
Que romperam a barreira
Do meu não-ser instável,
A facilidade com que me movia facilmente
Entre as nuvens densas
Da minha intrínseca melancolia.

Um infortúnio veio ser meu companheiro:
Não havia mais sol nem estrela nem baluarte,
Pois no meu leito apenas um feixe de luz lunar
Acomodava-se entre minhas desventuras:

O que seria eterno propagou-se no crepúsculo
E eu vi-o tornar-se vapor
Na hora mais imprópria do dia:
Insubstituível, mas inevitável:
O tempo estéril do ócio amoroso
A contemplar penosamente o passado inglório.

Stalingrado

Sob os escombros, Stalingrado
Renasce com a força vitoriosa
Dos justos.

Sob os escombros, Stalingrado
Renasce repleta de vida
Das mortes deixadas pelo caminho.

Sob os escombros, Stalingrado
Expande-se até Berlim,
Transformando uma vida execrável
Em História perene.

Sobre os escombros, o frio de Stalingrado
Dá lugar ao calor das armas de fogo
De soldados saudosos;
Sobre os escombros, o frio de Stalingrado
Intensifica-se com as lágrimas
Das mortalhas.

Sob os escombros de Stalingrado,
O mundo renasce
Sem suásticas ameaçadoras.

Sobre o céu de flores e sob
O jardim de estrelas
De Stalingrado
Há um povo soberano.

Nas mãos de Stalin concentram-se
Todas as esperanças numa alvorada
Em cujo horizonte não se reflita
A escravidão do ocidente.