domingo, 26 de setembro de 2010

Das tiranias

Andava aparentemente tranquilo pelas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, meio sem rumo, porém com um vago pensamento sombrio, cujo significado não sabia precisar. Quando, involuntariamente, olhei para o céu e percebi que a lua se posicionava em quarto minguante, majestosa, formando um arco no céu, que se precipitava contra todas as aspirações petulantemente concebidas pelos seres deste mundo. Aquela cena viva, aquela vida sem movimento, aquele movimento imperceptível e supostamente morto deu-me a sublime impressão de que o céu me sorria. E me senti forte. Entretanto, essa ideia tão efêmera logo foi substituída por outra: a atmosfera encontrava-se impregnada de homens ruins, cujos propósitos miseravelmente maus produziam em mim uma pungente sensação de prisão, contrapondo-se aos sorrisos expostos nas faces dos seres, como vitrines de produtos descartáveis. A saudade é a crisálida de todas as angústias...
A janela do meu quarto permanecera fechada durante muito tempo. Pejava-me a sensação de ter a privacidade invadida pelas exalações da natureza, pelos olhares calorosos do sol. Ali, naquele retângulo terrivelmente produzido por mãos desconhecidas e – quem sabe? – assassinas e torpes e corruptas, não poderia haver nada senão miséria. Não queria que minha visão se resumisse a ângulos projetados por um ser desconhecido, que pusera naquela janela vestígios do seu mundo repugnante, no meu quarto, sem o meu prévio consentimento. Além disso, é através da janela que vejo as estrelas, que contemplo o meu futuro sem aspirações. Desta janela que vi Omolara pela primeira vez: numa manhã de sol escaldante, contrastando-se com sua tez negra. Pensei: a Perfeição foi superada.
Ademais, não quero deparar-me com fisionomias aborrecidas, desgastadas pelo uso indevido de expressões que, por serem falsas, são também inúteis. Porém, tenho a leve sensação de que estas paredes não me podem prender; tenho conhecimento de todos esses infinitos os quais desconheço.
Pessoas desfilam diante de mim com seus adereços caríssimos; não sei como conseguem conviver com a contradição do capitalismo nos seus próprios corpos. Olho os apartamentos e seus moradores nas janelas, acenando para desconhecidos, com sorrisos expostos nos lábios frios. Já tive ímpetos de mandar-lhes algum sinal obsceno, porém contive-me. Malditos! Será que eles não vêem que pessoas se abrigam ali, em suas calçadas? Ficam ostentando ornamentos supérfluos, são burgueses que não têm consciência de classe. Não vêem que eles são produtores da miséria?! Na primeira oportunidade, mandar-lhes-ei enfiarem um objeto cilíndrico, de muito valor, em suas respectivas cavidades anais.
Omolara: por onde andará Omolara? Deparei-me com a felicidade durante apenas dois dias; veio da Nigéria. Hoje talvez esteja em algum país desenvolvido, exercendo imperialismo nos países do seu continente de origem. Ali começou minha derrocada, quando Omolara partiu sem adeus, sem lágrimas e sem desdém. Senti furar-me o peito o seu perfume; senti banhar-me a fronte o seu suor; senti arrebatar-me o peito o seu amor, tão intenso e passageiro. Omolara tem alma de pássaro: encontrou nas minhas folhas abrigo e alimento e palco para o seu espetáculo, um concerto de dóceis melodias; e o seu pouso no meu ninho foi para depositar suas penas. Hoje está produzindo novos sentimentos noutros seres humanos, em países longínquos e desconhecidos, falando idiomas estranhos e lidando com moedas hegemônicas.
Um vento passa e consigo escutar exatamente o que ele me diz: algumas verdades: não sei cumprir promessas e meu sorriso é falso; oferto muito mais do que os meios os quais disponho, e assim fico em débito; busco alternativas para recompor tudo, mas com isso acabo acumulando novas promessas e forçando novos sorrisos.
Levei Omolara para conhecer a cidade. Ela sorria e, na verdade, enganava-me. Mas fizemos sexo durante toda a noite, e em determinado momento ela me olhou nos olhos e disse: “Amo você. Mas sou como o vento: gosto de passar pelas vidas liberando sempre um aroma, deixando, assim, uma parte de mim em todas as pessoas que me amaram.” E partiu, sem explicar o que havia dito. Eu não entendi, porque ainda me encontrava no êxtase daquela cena maravilhosa, suas pernas entrelaçadas pelo meu corpo, arranhando-me com as garras, gritando, muito desvairada; meu pensamento não foi rápido o suficiente para assimilar um rompimento tão repentino. Eu precisava de algo mais explícito, todavia, tive que me contentar com aquela justificativa subjetiva. E parei para interpretar, mas só depois, pois havia acabado de ter um orgasmo descomunal, ainda não me encontrava em juízo perfeito.
Quando descobri, ela já havia partido. Meus livros estavam revirados, a janela estava aberta, a vida incompleta; todos os meus compromissos profissionais, pessoais e políticos foram desmarcados. Fui prejudicado: desfiz amizades, perdi chances de empregos; fiquei uma semana sem comparecer à sede do Partido, num momento importante, a mobilização das massas trabalhadoras.
Eu blasfemei. Mas isso não faz sentido, porque nada faz sentido. Omolara anunciou sua fuga, e eu não pude evitá-la. Não me empenhei o suficiente para tomar posse do vento. Mas a vida é assim: lembra-se apenas do que finda; o interminável não deixa lembrança, e o amor que não sente saudade não possui paixão. E eu sigo assim, por esta vida, cada vez mais inconcluso.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Transportes

Ainda que a pedra seja
Um recanto admirável,
Onde talvez durmam as destrezas
De um coração reluzente
Perante os maldizeres de sua carne,
Serão fulgurantes minhas pálpebras
Quando pousarem em ti
Com o meu olhar faminto.

No desnível mais recôndito do teu corpo
Minha língua será dócil transeunte
Do suor que te escorre desde o ventre,
Tenazmente, em relação harmônica
Com os pensamentos lúbricos
Que invadem o âmago dos amantes
Durante a noite, que é serva da lascívia
E seiva poética.

Teus pés deslizam pelo solo infértil,
Qual onda de mar não cristalizado,
Por onde fluem as ânsias intrépidas
De um coração fumegante,
O qual, no abrigo de minhas mãos, ressona
Como o vulcão insano que abala dois corpos
Numa tempestade voluptuosa
De raras precisão e beleza em chamas.

E esta é a mecânica da vida:
Um olhar concupiscente reflete
Na retina repleta de sangue
O amor que se deve à ininterrupção
Dos sentidos que captam a luz efêmera
De um sol que vive para iluminar
Uma amada estrela da Terra.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aniversário

Hoje faço aniversário. Entretanto, não tenho motivo algum para comemorar. Neste dia tão importante, quando o mundo todo se preocupa comigo, faz-se necessária uma análise. Nunca fui um bom autocrítico. Na verdade, sempre me escondi de discussões que me tinham como foco principal. Mas talvez isso seja um sinal de maturidade. Para ser sincero, estou até quase emocionado. Esta é a inauguração da minha sinceridade.
Vinte anos. Observo que os meus erros são muito mais numerosos do que os meus acertos. Fiz tudo errado. Ou, antes, errei em tudo. Pois há diferença: quem erra em tudo pode não fazer tudo errado. Mas, geralmente, aquele que faz tudo errado acaba errando em tudo. Se eu pudesse transferir minhas atitudes para outra vida, aproveitaria uma quantia mínima. Pois tudo que eu fiz, até hoje, sofreu regressos e me impossibilitou de levar uma vida feliz. Eu não sou feliz. E isso nada tem a ver com perdas amorosas; pelo contrário: adquiri mais amores do que meu coração pode ofertar, de forma que fui me enganando.
Já recebi inúmeras sugestões de verdadeiros amigos para a comemoração do meu aniversário. Rejeitei todas. Apesar de ficar assombrado sempre que penso na ideia de solidão, quero passar este dia sozinho. Não vejo motivo algum para comemorar. Quantas outras milhares de pessoas nasceram neste dia dezesseis de setembro e outras que morreram e outras que nasceram e morreram e outras que nascerão amanhã e depois e também morrerão? O que todas essas comemorações por nascimentos e aniversários e lamúrias em velórios podem acrescentar de bom na dinâmica do mundo? Não é especial. A fração que me resta do meu dia é tão mínima que não representa nada para mim; pode representar para os outros que ainda não perceberam o que percebi, mas, quando perceberem – se viverem até lá – ficarão tão incrédulos quanto eu. Aliás, o problema é este mesmo: não creio em nada, nem em mim, pois tudo que fiz, até hoje, foi extremamente falso.
Eu tinha bons propósitos, o que me torna um ser ainda mais desprezível: aquele que tem maus propósitos e faz tudo errado, segundo seus conceitos, está agindo de maneira correta, pois gosta de ser um tremendo filho da puta. Mas aquele que tem bons propósitos e não consegue realizá-los se sente fraco; sente-se incapaz. Exatamente como eu me sinto: mãos atadas.
Não mereço receber parabéns. Parabeniza-se por uma bela atitude, por um bom resultado obtido num empreendimento difícil, pelo esforço, entre outras coisas. Eu nunca obtive bons resultados concretos, não me esforço para obtê-los e minhas atitudes mais belas não são percebidas. Não quero contestação. Ninguém está dentro de mim, ninguém sente o que eu sinto, enquanto eu sou – ou quero ser – o que todos sentem.
Aí vêm as reflexões egoístas de outras pessoas, como se eu me preocupasse com elas. “Você é estranho!” “Pára de palhaçada.” Julguem, julguem. O melhor presente que eu poderia receber foi concedido por mim mesmo: este texto, que mostra que ainda há um pouco de verdade e sinceridade dentro deste que corpo que vai virar nada. O resto, – que resto? – não vai me atingir.

sábado, 4 de setembro de 2010

Num céu longínquo

Glorioso o céu da Nigéria,
Por ter sob seu lenço a aura tua!
Como será aí mais bela a lua,
Chorando em ti por tantas misérias...

Ó África! Ó Mãe! Sabias
Que perdeste uma estrela do teu céu?
A fisionomia do teu firmamento ficou vazia,
Depois que Omolara, pela chuva que tu choravas, desceu.

Então sonhe, Omolara. Aproveite o ensejo,
Que enquanto sonhas comigo sonhas;
Na tua boca florescem os meus beijos
Que tocam tua alma.

Quiçá morto estarei amanhã,
Porém muito mais vivo:
Habitante, não desta terra de Tupã,
Mas do teu peito altivo.