quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Vozes íntimas

Teus cabelos são os raios da aurora,
As canções as quais outrora
Ministrava um menestrel;
Tua voz é melodia,
Deliciosa harmonia
Dos anjos do céu.

Sou como me vês:
Doce e cálido amante,
Em cujo coração palpitante
Fixa-se a imagem de tua nudez.
Agora, se sou o que tu és,
Atirado aos teus pés
Já não sei quem sou...
Pois nossos corpos unidos,
Nosso leito florescido
Nalguma noite germinou.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Voracidade

Os seios, o ventre, a genitália,
Tudo! Dê-me agora tua sonolência
Pródiga, infinita: uma noite
Não é noite sem cópula!

O maldizer que destilas
É proveniente do fogo de paixão
Com que me beijas.
E o sorriso o qual me negas
É um engodo: estou vencido,
Fui facilmente vencido:
Pois sexo, amor, é algo
Sobre alguma coisa;
Alguém dentro de outrem;
É a profundidade incomensurável
De alguém sobre outrem, um órgão
Dentro de outro:
É o atalho mais curto para as estrelas!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Via crúcis

Se amor é o que me deste,
Do desamor não o sei mais discernir;
Pois que de espinho a flor se reveste
Antes mesmo de a possuir.

E eu tinha amor nos olhos,
Porque te olhava;
E meu coração inerme estava
Sedento por beijar-te
E escrever-te uma poesia,
Na qual tu serias minha escrava:
Sempre amei hiperbolicamente...

Mas sentes meu amor vulcânico
Entrando em erupção à noite,
Quando me amavas e me olhavas
E me sorrias, e te escondias
Tão logo o cálice do prazer derramava,
Inundando os nossos corpos exaustos
De alguma coisa sublime.

E então me sentia repleto de tua ternura,
Do teu cândido fogo a queimar-me;
E sentia o êxtase invadindo tuas entranhas,
Possuindo-te sem pejo,
Quando me negavas um beijo
Para fustigar meu desejo;
E eu celebrava o amor com avidez ainda maior,
Percorrendo a via crúcis no teu corpo profano.

Todavia, o gelo sorrateiro brotou nos teus olhos,
Congelando amargamente a nossa cena;
E teus pelos magníficos
Não se eriçam mais na minha presença,
Pois aquilo que denominaste suspiro
Era, na verdade, ebulição
E o nosso amor – vapor.

sábado, 7 de agosto de 2010

Central do Brasil

Central do Brasil, meia-noite. Os pivetes espreitam-me, riem de mim, do meu casaco roto e do meu semblante cansado. Sim, cansado, pois já errei por diversas ruas até chegar aqui. Os poucos carros que se aventuram passam em alta velocidade; os únicos transeuntes são os ratos. Não encontro motivação para voltar para casa, e por isso ficarei aqui.
Há um bar aberto, Avenida Presidente Vargas. Entro, o atendente olha-me de cara feia, provavelmente cansado; peço uma aguardente e saio, retribuindo o olhar de fastio do rapaz preso ao balcão. Prisão do rapaz: setenta e sete horas semanais de trabalho; minha prisão: dois anos de casamento frustrado, de traições, injúrias e perjúrios.
Cultivei uma alegria sombria em detrimento das coisas que me faziam desfalecer. Assim, por diversas vezes, fui qualquer coisa que não se assemelha a mim. Troquei o significado de tudo: sorriso passou a ser máscara; lágrimas tornaram-se água; sofrimento tornou-se ar; matrimônio passou a significar relacionamento ocasional. Dois cônjuges, duas vidas extremamente infelizes.
Estou andando há muito tempo, mas a lugar nenhum cheguei. Desde então, sou dois extremos: tudo e nada. Sou um nada que errou em tudo. Penso em mudar, mas decidi não fazê-lo. Não quero perder estas virtudes e estes defeitos, os quais demorei tanto tempo para aceitar, ultrapassando inúmeros obstáculos. Quem sou eu, afinal? Ou melhor, o que sou eu?
Os moleques esconderam-se. Pensam, provavelmente, que irei roubá-los. O que me diferencia dos moleques?
As flores com as quais presenteio possuem espinhos. Vou, porém, voltar para casa, conquistar minha esposa, ainda uma vez, dizer-lhe que sim, que errei e sou reincidente, mas, se volto para casa, é porque a amo. Amo-a e o amor é grande; se não o fosse, trocá-la-ia pela primeira mulher mais nova que me piscasse os olhos, sorrisse-me com graça. Mas, não. Eu volto para casa. Volto porque a amo, naturalmente.
A noite se segue; a lua se eleva, indiferente. Minha memória está obstinada em tapar-me a visão, camuflar os acontecimentos reais. Poderia viver assim?
Um decadente. Sempre dou mais do que sou capaz, de modo que engano a mim mesmo, para depois enganar a todos os amores que passaram pela minha vida.
Uma prostituta passa ao meu lado, pisca-me os olhos apertados, indiferentes: tentativa de sedução maquinal. Ignoro a razão pela qual ela me tenta, é evidente que não possuo meios de pagar-lhe o serviço. Ignoro, dou dois passos adiante. Olho para trás e imagino a mulher fazendo o mesmo para outro rapaz. Esboço um acesso de raiva, mas observo que seria um despropósito revoltar-me com alguém em seu trabalho. O que eu faço também não é prostituição? Pois sim!
O melhor é seguir em frente, alheio às prostitutas e aos ratos. Mais fácil quando eu era natural. Não precisava esconder-me atrás de sorrisos ou palavras dóceis. Já me falaram que careço de qualquer crença, mas crer em quê? Creio apenas nas maldades do amor e nas marcas indeléveis que ele me causa. Mesmo assim, sempre lhe dei outra chance. A culpa deve ser minha.
“E vem me falar de Deus?” gritei, sozinho. Acordei, provavelmente, a vizinhança do centro do Rio de Janeiro. Um disparate: os moradores das imediações vão pensar que se trata de alguma confusão, que sou um gatuno, um velhaco, vão correr atrás de mim, que não tenho força para correr, e quando me alcançarem, distribuirão pontapés, não terei forças para vencer o pugilato com um grupo rebelde, reivindicando sono e vou morrer, aqui na calçada. Amanhã serei notícia, tornar-me-ei santo: rapaz, vítima de injustiça, é morto covardemente por um grupo de pelo menos vinte pessoas. Minha esposa não pensará mais nas minhas falsas promessas, serei vestido de maneira decente e terei um enterro digno.
Não! Devo pagar, na Terra, pelas minhas maldades. Que maldades?! Alego que sou vítima, sou a todo instante coagido pelos propósitos do meu coração, que não possui dispositivo que o ligue ao cérebro, então é um réu que age inconscientemente. Além do mais, sou também réu confesso: matei amores, sim, roubei almas, sou inadimplente de algumas paixões, embora seja extremamente passional. Mas foi o acéfalo do meu coração que decidiu, sempre. Nada é ininterrupto.
Ninguém parece prestar atenção em mim. E, ainda que alguém se aventure, poderia decifrar-me? Não sei, esta é a metrópole. Difícil exigir atenção das pessoas, inspirar confiança para prosear com alguém, a fim de elucidar o que se passa em meu interior. Inútil obter novos camaradas, já os possuo mais do que santos ou fé. Entretanto, gostaria de conversar com alguém, discorrer sobre minhas teorias revolucionárias, expor as razões do naufrágio do meu matrimônio, falar de futebol, cantar uma música antiga, essas coisas da cidade grande, meio falsas. Mas no momento todos dormem; minha esposa espera-me acordada, com sono e com raiva: a cidade dorme; a infidelidade acorda.
Dormirei na porta do bar do rapaz aprisionado, pois meu leito conjugal tornou-se muito pequeno para acomodar duas almas estranhas. Ele, vendo-me ali, irá supor que se trata de provocação, aliar-se-á ao grupo sonâmbulo que não me assassinou, e me matará de uma vez, como o faço, dia após dia.